MEDICAMENTOS HUMANOS PARA CÃES
No contexto da medicina veterinária, as intoxicações constituem uma parcela significativa dos atendimentos de emergência, e, entre as diversas causas, a ingestão de medicamentos de uso humano por cães destaca-se como um problema persistente.

Centros de controle de intoxicação de animais, como o ASPCA Animal Poison Control Center (APCC) nos EUA, mostram que medicamentos para humanos são a principal causa de intoxicação em pets, há anos
A Pet Poison Helpline do mesmo país, consistentemente, apontam os medicamentos humanos como uma das principais causas de exposição tóxica em animais de estimação
Em 2014, o APCC registrou mais de 167.000 casos de exposição a substâncias potencialmente venenosas, dos quais quase 16% (26.407 casos) foram atribuídos a medicamentos destinados ao uso humano, colocando esta categoria no topo da lista de toxinas pelo sétimo ano consecutivo.
Dados mais recentes de 2024 reforçam essa tendência. O APCC respondeu a mais de 451.000 chamadas relacionadas a exposições a substâncias tóxicas, com MVL (medicamentos de venda livre) liderando a lista, representando 16,5% das exposições. Os medicamentos de prescrição humana (MPH) ocuparam a terceira posição. A Pet Poison Helpline, por sua vez, relata que mais de 30% de suas chamadas envolvem exposições a medicamentos e suplementos humanos, muitos deles psicotrópicos, e que os cães são responsáveis por aproximadamente 65% dos casos de intoxicação farmacêutica.
A proporção dos MVL (medicamentos de venda livre) na liderança das causas de intoxicação em 2024, em contraste com a posição dos MPH (medicamentos de prescrição humana), sugere uma mudança no perfil das exposições. Ela pode indicar uma maior negligência por parte dos tutores em relação ao armazenamento de medicamentos ou simplesmente a sua maior disponibilidade e acessibilidade nos lares.
Uma substância de destaque nos últimos anos é a maconha. A Pet Poison Helpline observou um aumento de 430% nas chamadas relacionadas à maconha entre 2019 e 2023, coincidindo com a crescente legalização do uso da substância em diversas regiões dos Estados Unidos da América.
Embora tenha havido uma redução nas chamadas em 2024, a maconha ainda figura como o sexto principal veneno para cães.
Para contextualizar a posição dos medicamentos humanos em relação a outras toxinas, a tabela a seguir apresenta uma comparação das principais categorias de intoxicação em cães, com base em dados de centros de controle de intoxicações globais e brasileiros (CIT/RS – Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul).
CENÁRIO BRASILEIRO
Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), baseado em dados do Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul (CIT/RS) entre 2005 e 2009, oferece um vislumbre regional, indicando que medicamentos foram responsáveis pela maioria dos incidentes, totalizando 44% das intoxicações em pequenos animais.
Dentro dessa categoria, os Anti-inflamatórios foram a causa mais frequente (62%), seguidos pelo paracetamol (24%) e drogas psicotrópicas (14%). Embora esses dados sejam mais antigos, eles representam a única estatística brasileira específica e detalhada sobre intoxicações por medicamentos humanos em cães.
MAIORES DETALHES
MEDICAMENTOS MAIS ENVOLVIDOS
As intoxicações por medicamentos humanos em cães são frequentemente resultado da (1) ingestão acidental por descuido ou da (2) administração inadequada por tutores.
ANTI-INFLAMATÓRIOS
Os anti-inflamatórios não esteróides, como o ibuprofeno (Advil, Motrin), naproxeno (Aleve) e diclofenaco, são amplamente utilizados na medicina humana para alívio da dor e inflamação. Contudo, representam uma das causas mais frequentes de intoxicações por medicamentos em pequenos animais, sendo responsáveis por 62% dos casos de intoxicação por medicação no Brasil, segundo dados do CIT/RS de 2005-2009.
O ibuprofeno, em particular, figura entre os 10 principais venenos para cães em 2024, conforme a Pet Poison Helpline.
O diclofenaco, embora um anti-inflamatório comum, é aprovado apenas para uso humano e estritamente contraindicado para cães, sendo responsável por grande parte das intoxicações. Doses diárias de 75mg ou 150mg podem causar efeitos tóxicos significativos em cães em curto período.
Paracetamol
O paracetamol, ou acetaminofeno (Tylenol), é um analgésico e antipirético amplamente utilizado por humanos. No Brasil, foi a segunda causa mais comum de intoxicação por medicamentos em pequenos animais, representando 24% dos casos entre 2005 e 2009. Embora considerado seguro para humanos em doses adequadas, é extremamente perigoso para pets, especialmente gatos, que são de 7 a 10 vezes mais sensíveis à sua toxicidade do que os cães.
Antidepressivos e Psicotrópicos
Medicamentos psicotrópicos, incluindo antidepressivos (como Effexor, Cymbalta, Prozac, Lexapro), medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (como Concerta, Adderall, Ritalina), e benzodiazepínicos/sedativos (como Xanax, Klonopin, Ambien, Lunesta), são uma preocupação crescente.
No Brasil, drogas psicotrópicas foram responsáveis por 14% dos casos de intoxicação por medicamentos em pequenos animais (CIT/RS 2005-2009). Globalmente, mais de 30% das chamadas da Pet Poison Helpline envolvem medicamentos e suplementos humanos, muitos dos quais são psicotrópicos, com medicamentos cardíacos, antidepressivos e para TDAH sendo os mais frequentemente envolvidos entre os de prescrição humana.
Outros Medicamentos Significativos
Além das classes mencionadas, vários outros medicamentos humanos representam riscos significativos para os cães:
Fluorouracil: Este medicamento quimioterápico, também presente em cremes e soluções tópicas para a pele, é uma das principais causas de mortes por envenenamento em cães. A exposição pode ocorrer não apenas pela ingestão direta do recipiente, mas também pelo simples ato de o cão lamber a pele onde o medicamento foi aplicado.
Essa forma de exposição, menos óbvia, amplia o escopo das intoxicações por medicamentos para além das pílulas ingeridas, destacando a necessidade de precaução com produtos tópicos e a vigilância sobre o contato dos pets com a pele tratada.
Narcóticos: Morfina, oxicodona, hidrocodona, fentanil e outros narcóticos podem causar doenças graves ou morte em pets, independentemente de sua origem legal ou ilegal.
Canabinoides (THC/Maconha): Os casos de intoxicação por tetrahidrocanabinol (THC) estão em ascensão devido ao maior acesso e à crescente potência dos produtos de maconha. Os sinais clínicos mais comuns em cães incluem hiperestesia, letargia, incontinência urinária, ataxia, desorientação, bradicardia, hipotermia e tremores. Embora a morte seja rara, a sensibilidade individual varia amplamente.
Vitaminas e Suplementos: Vitaminas, especialmente a Vitamina D3 em overdose, e suplementos dietéticos podem ser tóxicos para os cães.
Medicamentos para Pressão Arterial: Enquanto os inibidores da enzima conversora de angiotensina (ACE), como Zestril e Altace, são geralmente seguros em pequenas overdoses, os betabloqueadores (Tenormin, Toprol, Coreg) podem causar envenenamento grave mesmo com pequenas ingestões, levando a quedas perigosas na pressão arterial e a uma frequência cardíaca muito lenta.
MECANISMOS DA TOXIDADE EM CÃES
A suscetibilidade dos cães a medicamentos humanos deve-se a diferenças significativas em seu metabolismo e fisiologia em comparação com os humanos. Compreender esses mecanismos é crucial para explicar por que uma substância segura para uma espécie pode ser letal para outra.
Sinais Clínicos de Intoxicação
Os sinais de intoxicação em cães podem variar amplamente, dependendo do tipo de medicamento, da dose ingerida, do peso do animal, da sua idade e da sensibilidade individual. No entanto, alguns sinais são comuns a muitas intoxicações, servindo como alertas para os tutores.
FATORES CONTRIBUINTES
A ocorrência de intoxicações por medicamentos humanos em cães é multifatorial, mas a análise dos casos revela que o comportamento humano é a causa subjacente predominante.
ADMINISTRAÇÃO INADEQUADA (AUTOMEDICAÇÃO)
A principal causa de intoxicação é a administração de medicamentos humanos por tutores sem orientação veterinária. Essa prática, muitas vezes motivada pela tentativa de aliviar a dor ou desconforto do animal, é exacerbada pela “cultura da automedicação” presente na sociedade humana e pela percepção equivocada de que medicamentos seguros para humanos são igualmente seguros para pets.
INGESTÃO ACIDENTAL
A ingestão acidental é outra via comum de intoxicação. Muitos medicamentos humanos são armazenados de forma inadequada, ao alcance dos pets, seja em bancadas, mesas de cabeceira ou armários de fácil acesso. Além disso, objetos pequenos, como frascos de medicamentos, podem ser mastigados por pets curiosos, liberando o conteúdo tóxico.
EMERGÊNCIA – AÇÕES
Em caso de suspeita de intoxicação por medicamentos humanos, a rapidez na ação é um fator determinante para o sucesso do tratamento e o prognóstico do animal.
Contatar um Veterinário:
O tempo é crítico. O tutor deve ligar imediatamente para seu médico veterinário.
Fornecer Informações Detalhadas: Estar preparado para informar a raça, idade, peso do animal, o nome exato do medicamento ingerido (se possível, com a embalagem em mãos), a quantidade aproximada e o tempo decorrido desde a ingestão, além de quaisquer sinais clínicos observados.
Não Induzir Vômito sem Orientação: Nunca se deve tentar induzir o vômito ou administrar qualquer “antídoto caseiro” (como leite ou sal) sem a orientação expressa de um profissional. Certas substâncias podem ser mais prejudiciais se vomitadas, ou a indução de vômito pode ser contraindicada dependendo do estado do animal.
PRINCIPIOS GERAIS DE TRATAMENTO
O tratamento da intoxicação varia de acordo com o medicamento, a dose e o estado clínico do animal, mas geralmente segue princípios de descontaminação, terapia de suporte e administração de antídotos específicos, quando disponíveis.
CONCLUSÕES
A intoxicação de cães por medicamentos de uso humano é um problema de saúde pública veterinária de grande relevância, com estatísticas consistentes de centros de controle de intoxicações globais que a posicionam entre as principais causas de exposição tóxica. A predominância de medicamentos de venda livre e de prescrição humana nas listas de toxinas mais comuns demonstra o risco associado a esses produtos nos lares. Embora os dados brasileiros sejam mais escassos e regionalizados, eles corroboram a tendência global.
Os fatores contribuintes para essas intoxicações são predominantemente comportamentais, incluindo a automedicação por parte dos tutores, o armazenamento inadequado de medicamentos e a falta de conhecimento sobre os riscos. Essa constatação direciona as estratégias de prevenção para a educação dos tutores e a implementação de práticas de armazenamento seguras, pois a modificação do comportamento humano é a via mais eficaz para reduzir a incidência desses eventos.
Em suma, a intoxicação por medicamentos humanos em cães é um problema complexo, mas amplamente evitável. A conscientização, a educação contínua dos tutores e a busca rigorosa por orientação veterinária são pilares essenciais para proteger a saúde e a vida dos animais de estimação.